Estava buscando algumas coisas na internet quando me deparei com essa entrevista de Leonardo Bofff à site do "Agência Brail". Leia na integra. Créditos da Agência Brasil. Na primeira parte da entrevista, ele conta como foi o processo que sofreu no Vaticano por causa de suas idéias sobre a Teologia da Libertação. Boff descreve a personalidade de Bento XVI, considerado extremamente tímido. Ele espera que a vinda do papa ao Brasil resulte em um olhar mais direcionado para os problemas ambientais.
"Agência Brasil: O senhor teve uma convivência com o cardeal Joseph Ratzinger. Como foi essa aproximação?
Leonardo Boff: O papa é um grande teólogo. Eu o conheci na Alemanha, quando era estudante lá, como teólogo, muito apreciado. Ele me ajudou muito, porque eu fiz uma tese muito volumosa, e não encontrava editora para publicar. Ele leu a tese toda, umas 600 páginas, gostou muito, conseguiu um fundo de 14 mil marcos - hoje seriam 14 mil euros -, e eu agradeci muito a ele, disse isso no prefácio do livro. Nos conhecemos ali, ficamos amigos.
Ocorre que ele, de simples teólogo, foi alçado a cardeal, e de cardeal a prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, que é a ex-Inquisição. E em 1984, por causa de um livro que eu escrevi, Igreja, Carisma e Poder, ele me chamou a Roma, me submeteu a um processo, e eu tive que sentar na cadeirinha onde sentaram Galileu Galilei, Giordano Bruno, e tive que enfrentar todos os procedimentos de um processo doutrinário, durante três horas respondi às questões.
Uns meses depois, ele me impôs a punição, que foi um silêncio obsequioso, não podia falar, escrever, publicar, dar aulas. Esse silêncio só foi suspenso graças a dom Paulo Evaristo Arns, que, encontrando-se com o papa, disse: “Sua Santidade, o senhor fez com um aluno meu - eu fui aluno de dom Paulo – aquilo que os militares do Brasil fazem: fechar a boca, cortar a língua”. O papa disse: “Eu, como os militares, torturadores? Absolutamente! Liberem o Boff!” E aí, eu fui liberado, mas continuei sendo vigiado.
Então, por fim, tive que deixar de ser padre, deixar de ser franciscano, mas continuei como professor na Universidade do Estado do Rio, como teólogo, escritor, dando assessorias às comunidades. Não saí da igreja como instituição, eu deixei uma função, a função de padre. Mas continuei dentro da comunidade cristã, eu sou católico, considero a igreja o meu lar espiritual, e dentro disso eu me movo.
ABr: Depois desse processo todo, como é para o senhor ver Ratzinger tornado papa e vê-lo chegar ao Brasil?
Boff: O papa Bento XVI foi o braço direito de João Paulo II, que era um grande pastor, um carismático, mas não era um bom teólogo. Teólogo era o Ratzinger, o cardeal. E ele moldou essa imagem de igreja que João Paulo II divulgou pelo mundo, que é uma igreja em termos doutrinários muito rígida, inflexível, dogmática em questões de moral sexual, contraceptivos, matrimônio de homossexuais e essas coisas todas, ele não concede nada, é extremamente rigoroso. Para dentro da Igreja, ele era muito severo, e eu diria até repressivo.
A gente tem que reconhecer que o cardeal Ratzinger, como presidente da Congregação para a Fé, condenou mais de 100 teólogos, que foram depostos de cátedras, silenciados, punidos etc. Para fora, esse papa tinha a imagem de um grande showman, uma pessoa profundamente carismática, que entusiasmava as massas, cantava, abraçava crianças, conversava muito com jovens, era um homem do diálogo com as religiões, com as igrejas. Mas essas duas imagens não se combinavam.
Essa mesma atitude está levando Bento XVI, ele não tem um modelo novo de igreja. É o mesmo modelo. E eu diria até um pouco mais enrijecido, porque ele não tem o carisma, infelizmente de João Paulo II, é mais um doutor, um professor alemão, contido. Ele é muito tímido, e eu, que o conheci pessoalmente, posso imaginar como ele deve estar sofrendo sendo papa, tendo que fazer esses gestos que parecem populistas, erguer os braços, abraçar pessoas, isso não é do estilo dele, ele deve fazer com muito desconforto. Mas o faz porque pertence ao rito do papa. E ele virá ao Brasil bem acolhido, o povo brasileiro é um povo religioso, místico.
Nós estamos esperando, e um pouco surpresos, sobre o tipo de mensagem que ele vai dar. Se ele vem com a cabeça de um europeu, aí ele não vai ver muito bem a nossa realidade. Agora, se ele vem como uma pessoa inteligente que é, como um pastor também que escuta o grito dos oprimidos, milhões de pobres, as injustiças sociais, a violência, se ele olhar um pouco ao redor e enxergar a importância da Amazônia para os climas da Terra e da humanidade, já que agora, com os dados novos, elas estão ameaçadas, ele pode fazer um discurso que anime a Igreja a se comprometer, a ajudar a criar mais justiça, mais fraternidade, mais paz, e que ajude a cuidar desse patrimônio fantástico que Deus nos legou, que é a abundância de águas, a biodiversidade, a Floresta Amazônica, e que temos uma responsabilidade com toda a humanidade, com o planeta Terra.
Eu espero que ele faça isso, assim como o papa Leão XIII, quando viu a miséria dos operários do processo de industrialização, escreveu a encíclica Rerum Novarum, que foi o primeiro documento social da Igreja - daí vieram muitos outros. E pode ser que, aqui, o papa lance uma plataforma que não foi lançada ainda hoje: a visão que a Igreja tem sobre a ecologia e a responsabilidade que ela assume face a toda a humanidade.
Agência Brasil: O senhor avaliou que não existiria muita diferença entre o papado de Bento XVI e o de João Paulo II, e que este seria um papa de transição. O que vem depois dessa transição? Há alguma possibilidade de mudança no próximo papado?
Leonardo Boff: Nós esperamos que haja mudanças significativas, porque 53% dos católicos estão no terceiro mundo, 42% na América Latina. Então, hoje, o cristianismo é uma religião do Terceiro Mundo. E é na África, na Ásia, na América Latina, isto é, na periferia, que se está dando a novidade, a igreja cresce, tem uma liturgia nova, se encarna nas culturas. Aqui na América Latina ela está criando um rosto índio, negro, mestiço, branco, latino-americano, e é assim um pouco por todas as partes.
Essa realidade vai pesar cada vez mais no centro, que é Roma. Porque o cristianismo europeu é decadente, crepuscular, com uma inarredável crise espiritual. A população toda da Europa está decrescendo, e o cristianismo junto. Então, o cristianismo não pode ser só ocidental europeu. Senão, ele fica ocidental, ele tem que ser mundial. E somos nós que damos o caráter de mundialização, de globalização. Então eu acho que virá uma mudança, seguramente com um papa mais jovem, porque esse papa é ancião, tem 80 anos, teve um AVC [acidente vascular cerebral], tem problema cardíaco, não está bem de saúde.
Ele está bem de pernas, ele anda bem. Mas, de saúde, não anda bem. Então é nitidamente o papa de transição. Nós esperamos que venha alguém do Terceiro Mundo com uma nova forma de agir como papa, com outro discurso, possivelmente muito mais simples, nada de palácios e aquelas figuras quase ridículas de cardeais passeando aqui e ali como príncipes, coisas que não têm nada a ver com o Evangelho. Virão modificações, e certamente serão boas para todos nós.
ABr: O mundo hoje caminha na direção de visões mais progressistas em relação a temas como aborto, direitos civis de homossexuais. O Vaticano insiste em continuar condenando avanços em relação a esses temas. Com o próximo papa, pode haver alguma mudança nesse sentido?
Boff: A Igreja Católica Romana firmou posições muito firmes nas questões ligadas à sexualidade e a família. A gente não deve esquecer que a Igreja, como instituição, é um patriarcado autoritário espiritual. É a única monarquia absolutista que existe no mundo. O papa tem poderes praticamente divinos. Então, a igreja firmou aí uma doutrina: ela é absolutamente contra o aborto, a união de homossexuais, o uso de contraceptivos, é uma questão muito difícil. Eu diria que no fundo ninguém é a favor do aborto, ninguém. Porque o aborto é uma agressão.
Abr: O senhor é a favor?
Boff: Não, eu sou contra, acho que ninguém é a favor do aborto porque ele implica em eliminar uma vida. Mesmo as pessoas que cometem o aborto o fazem com grande desconforto e sofrimento. Ninguém no mundo defende o aborto. O que se defende é a descriminalização, não considerar isso um crime. Porque as pessoas que fazem isso estão sob profunda coação, com grande dificuldade, e nós não devemos acrescentar mais sofrimento.
Agora, a questão, no meu modo de ver, encontra um encaminhamento partindo do seguinte: que a Igreja e nós vivemos em sociedade aberta e pluralista, onde há muitas opiniões. A Igreja tem o direito, e é o dever dela dizer a sua mensagem, ela é contra o aborto, mas tem que respeitar as outras opiniões. E o Estado tem que buscar um caminho de equilíbrio.
Por exemplo, o ministro Temporão [José Gomes Temporão, da Saúde] disse, há dias, que mais de 1 milhão de mulheres que cometem aborto morrem por ano por abortos mal-feitos. Então isso é um problema de saúde pública, e o Estado tem que cuidar disso. Não basta dizer: “Eu vou defender o feto, e que morram as mulheres”. Não pode, tem que haver um equilíbrio.
Isso tem que ser discutido profundamente na sociedade. O aborto passou em Portugal, na Espanha, na Itália, na Polônia, que eram países cristianíssimos. Mas, aí, acho que é um desafio da Igreja: respeitar as opiniões, organizar uma forma diferente de estar presente, criar conselhos, grupos que acompanhem as mulheres, que acolham as crianças que possam nascer e dêem toda uma assistência psicológica, moral, humana, como a Igreja do Canadá fez, ela lutou tremendamente contra o aborto e, quando passou, ela não se opôs simplesmente de forma rígida, mas trabalhou com o Estado para minimizar os efeitos negativos. Aí é uma maneira de a Igreja encontrar o seu lugar dentro de um mundo pluralista onde ela não tem hegemonia, e não é a única voz que fala.
ABr: Como o senhor considera que o Estado brasileiro encara a separação entre questões públicas e a influência da Igreja em temas polêmicos? A Igreja Católica ainda acaba influenciando em decisões governamentais?
Boff: O fato bom e feliz do Brasil é que o Estado é laico, há uma separação entre Igreja e Estado. Então, não há, como num regime de cristandade, onde a Igreja é oficial, como na Argentina, ou mesmo na Alemanha, o protestantismo e o catolicismo são religiões oficiais, o Estado paga os padres, os professores, os bispos, e tem um imposto religioso.
Nós não temos nada disso, o que é muito bom. Porque o Estado tem que atender o bem público, de todo mundo, ele não tem que ter uma religião. Não é que ele seja contra a religião. Mas ele, como Estado, não deve ter uma religião, para permitir que cada grupo tenha as suas, e respeitem as leis. O estado até favorece as religiões, porque elas fazem bem ao povo, alimentam a ética, a espiritualidade etc.
Nós nunca tivemos um conflito. Agora, há posições diferentes e questões de ética. Por exemplo: a Igreja no Brasil tem uma posição firme pela reforma agrária, mesmo os bispos mais conservadores sempre sustentaram a reforma agrária, e os papas sempre apoiaram, e aí os governos titubeiam, têm dúvidas, porque são pressionados pelos grandes latifundistas. As questões de família também são sempre meio conflitivas, porque a Igreja tem uma posição, e o Estado é mais aberto, tem que atender outras posições. Mas não é um conflito de base, é uma discussão que se dá dentro do pluralismo legítimo e democrático da nossa sociedade.
ABr - O papa vem para participar de um encontro de bispos da América Latina. Como o Vaticano encara a ascensão de líderes de esquerda no continente nos últimos anos?
Boff - O Vaticano se dá conta que ele perdeu a batalha da Teologia da Libertação. Porque, nos anos 80, ele condenou essa teologia, mas ela não é burocrática e acadêmica, ela nasce ouvindo o grito do oprimido, do índio, do negro, da mulher, do pobre. Enquanto perdurar essa situação, e ela se agravar no mundo, haverá sempre cristãos e teólogos que vão rejeitar essa situação, profeticamente vão denunciar isso e vão tentar organizar as comunidades, o povo e as 80 mil comunidades de base, os círculos bíblicos, as pastorais sociais, para enfrentar essa situação. Daí nasce a igreja da libertação, a pastoral da libertação, a Teologia da Libertação.
Então, essa teologia é muito viva no mundo todo, em todos os continentes. No Fórum Social Mundial de Porto Alegre e no de Nairobi houve, uma semana antes, um congresso dessa teologia, e estavam representantes do mundo inteiro. Então, é uma teologia muito viva, ela só não é tão visível como era antigamente, porque não é mais tão polêmica. O Vaticano se deu conta de que não adianta combatê-la assim. Tem que ver o seu lado bom, que ela ajuda a Igreja a se encarnar, a realizar a justiça.
Lógico que o papa vai chamar a atenção, para cuidar, para não politizar demais e não acentuar demais os conflitos, buscar convergências. E acho que é bom que ele faça essas advertências como um pastor faz. Mas, fundamentalmente, reconhece a validade e a legitimidade dessa teologia que é vivida por muitos bispos em todas as dioceses onde se toma uma séria opção pelos pobres contra a pobreza e onde se luta pela justiça social.
ABr - Como está a Teologia da Libertação no Brasil?
Boff - O Brasil é o país onde a Teologia da Libertação mais floresce. Ela nasceu aqui, no final dos anos 60, foi formulada primeiramente por um teólogo peruano, Gustavo Gutierrez, depois eu entrei e outros entraram. E nós aqui no Brasil nunca tivemos um conflito entre o episcopado brasileiro e Teologia da Libertação. Eu tive com o Vaticano, mas fui apoiado por dois cardeais, que foram comigo para Roma: dom Aloísio Lorscheider e dom Paulo Evaristo Arns
Então, ela é uma teologia comum no Brasil, a gente quase nunca fala em Teologia da Libertação. É a teologia concreta, rotinária. Eu nunca dei, na minha vida, um curso de Teologia da Libertação. A gente pratica uma teologia sempre ligada à sociedade, aos conflitos, e aí aparece a dimensão pública, a dimensão libertadora dessa teologia.
ABr - O senhor acha que essa situação no Brasil pode ter influenciado a escolha do país para a visita do papa, ou ela foi motivada pela perda de fiéis católicos no país?
Boff - Essa assembléia [5ª Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe] deveria ser realizada em Quito, mas quando o nosso cardeal em Roma, dom Cláudio Hummes, que era cardeal arcebispo de São Paulo, disse ao papa que a Igreja Católica perde 1% de fiéis por ano e que já perdeu 20 milhões, o papa levou um susto. E disse: “Então, vamos fazer a assembléia no Brasil. Eu mesmo pessoalmente vou lá, para incentivar a igreja, para reforçar os cristãos a não saírem, a ficarem dentro da Igreja Católica”.
Ele veio em parte em função dessa preocupação, embora eu acho que esse não seja um grande problema, porque a Igreja Católica é, em grande parte, culpada disso. Nós temos 140 milhões de católicos, precisaríamos ter de 100 a 120 mil padres. Só temos 18 mil, e grande parte deles são estrangeiros. Então, a igreja, institucionalmente, tem uma crise profunda, as vocações diminuem. E se cria um espaço aberto, vazio, que a Igreja não atende. Então, vêm as outras denominações cristãs, igrejas pentecostais populares que vêm, oferecem a sua mensagem, elas têm direito de fazer isso. E a Igreja Católica perde fiéis.
É importante que não seja feita uma disputa no mercado religioso para ver quem atrai mais, se é o padre Rossi [Marcelo Rossi, da Renovação Carismática Católica], se é o bispo Macedo [Edir Macedo, da neopentecostal Igreja Universal do Reino de Deus]. O importante é o cristianismo, porque, na visão de Cristo, que são os evangelhos, ele não quis criar uma nova religião. Ele quis criar um ser novo, um ser humano mais gentil, mais amoroso, mais solidário, que tivesse mais compaixão.
ABr - E quanto à Teologia da Libertação?
Boff - Em relação à Teologia da Libertação, a meu ver, o papa já considera uma coisa resolvida. Foram escritos dois documentos sobre o tema: um negativo, em 1984, outro positivo, em 1986, e se considera essa questão fechada. A Igreja já disse o que tinha que dizer e pronto. O que ele poderá fazer aqui e acolá é alguma advertência. Mas eu acho que se tem que reconhecer que essa é uma teologia eclesial, ajuda os fiéis e torna a igreja mais encarnada. E isso foi constatado estatisticamente. Onde existe comunidade de base, pastoral social, Teologia da Libertação, saem muito menos católicos para outras igrejas.
Onde esse fenômeno da igreja popular, da igreja da libertação não existe, onde as comunidades de base são suspeitas, onde teólogos são perseguidos, como durante anos aconteceu no Rio de Janeiro, ali muito mais saem católicos da igreja. Porque não sentem mais a igreja como o seu lar espiritual. Nós devemos tomar muito cuidado com essas questões, para não dizer: “O pessoal está saindo porque há politização demais”. Não é politização demais. É que as pessoas dizem: uma igreja que é uma igreja que não tem misericórdia, que é rígida, que não tem muita bondade, não é uma pátria espiritual, não ajuda a gente. A igreja tem que ser uma coisa boa para a humanidade, não um pesadelo".
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